AMPUTAÇÃO
 
Drauzio - Quem se encarrega da produção dessas próteses? 
Marco Guedes - Do ponto de vista funcional, podemos contar com vários recursos para a reposição da extremidade amputada, um trabalho profissional realizado pelos protesistas e ortesistas. Infelizmente, no Brasil, trata-se de profissões quase virtuais o que torna o assunto muito importante para ser debatido. Não existe formação regulamentada para esses profissionais. Você pode colocar uma placa – Dr. Drauzio Varella, técnico em prótese e órtese – que ninguém poderá retirá-la e dizer que você não está habilitado para isso. Por isso, é indispensável que as autoridades se preocupem com o problema e pensem em criar uma escola de formação em nível técnico superior para esses profissionais a fim de capacitá-los para discutir anatomia, função da marcha e o nível de secção das estruturas com a equipe.
 
Drauzio - Quando se fala em amputações, geralmente as pessoas pensam em acidentes. Na verdade, as amputações envolvem muitas outras patologias. Vamos falar um pouco sobre elas. 
Marco Guedes - Historicamente, os acidentes estão ligados à amputação. No passado, os traumatismos ocorriam mais em tempos de guerra. As batalhas eram travadas corpo a corpo. Hoje, se aperta um botão e está liquidado o assunto, mas as amputações traumáticas não desapareceram. Em países africanos, minas espalhadas e perdidas em campos agrícolas mutilam muitas mulheres e crianças. Nesse sentido, o problema de Angola é gravíssimo e deveria ser olhado mais de perto pela comunidade internacional. Atualmente, se considerarmos as estatísticas críveis dos países mais desenvolvidos, algumas doenças continuam encabeçando a lista de causas para amputação. Dentre todas, existe uma que já adquire caráter epidêmico: o diabetes. O diabetes acaba afetando neurologicamente as extremidades inferiores e isso leva à perda de sensibilidade protetora e do balanço estrutural do pé. O portador de diabetes, por exemplo, pode comprar um sapato um ou dois números menores do que usava anteriormente porque busca a sensação que tinha ao calçá-los antes que a neuropatia estivesse instalada. Acontece que esse sapato menor vai esmagar a unha e provocar o aparecimento de feridas. Como o diabético tem problemas imunológicos e de cicatrização, infecta mais fácil e esse pequeno ferimento pode ser transformar na porta de entrada para infecções que, se não forem tratadas adequadamente, poderão resultar em amputação. Por isso, hoje, a preocupação com o pé do diabético é prioridade. Prevenir ferimentos e tratar das feridas quando elas já apareceram é fundamental para diminuir o risco de amputações.
 
Drauzio - Além do diabetes, quais são as outras causas que levam a amputações dos membros inferiores?
Marco Guedes - No nosso meio, o trânsito é um fator importantíssimo. Não existem estatísticas confiáveis, mas falava-se que tínhamos um Vietnã por ano no trânsito de São Paulo. Não sei se ainda é assim, ou se já temos dois Vietnãs por ano em acidentes com mutilações e mortes  
A motocicleta é o veículo amputador por princípio. O motoqueiro cavalga a moto. Literalmente, ele a abraça com as pernas. Qualquer choque atinge primeiro as pernas do condutor. Seus membros inferiores são os parachoques da motocicleta. Segundo nossa estatística pessoal, a única a que posso me referir, 70% das amputações por trauma são provocados por acidentes de moto. Os 30% restantes envolvem acidentes do trabalho, com trens, elevadores e tudo o mais que se possa imaginar. Esse índice altíssimo de acidentes com motos parece não ser motivo de preocupação. O motoqueiro trafegar entre os carros, em velocidade, quase que é permitido por lei.


Drauzio - Tumores ósseos também representam uma causa importante para as amputações? 
Marco Guedes - Tumores ósseos também são causa de amputação, embora os protocolos indiquem resultados fantásticos em relação à sobrevida desses pacientes. Há 20 anos, morria a maioria das crianças e adolescentes vítimas de tumores ósseos. Hoje, temos uma população cada vez maior de jovens na segunda década de vida que sofreram amputação no nível transfemural e que têm a vida inteira pela frente.
 
Drauzio - O que é amputação em nível transfemoral? (meu caso)
Marco Guedes - Transfemural quer dizer acima do joelho, através do fêmur. Esse termo faz parte de uma nomenclatura nova que permite homogeneizar a linguagem mundialmente. Outro exemplo é a palavra transtibial quer dizer através da tíbia.

 
Drauzio - Antigamente, a amputação era o último recurso que se utilizava e tinha ares de derrota. Os cirurgiões não gostavam de fazer amputações e deixavam esse procedimento para quando não havia mais nenhuma outra possibilidade de solução, depois que o doente já tinha passado meses, às vezes anos, imobilizado. O conceito de amputação mudou muito nos últimos anos? 
Marco Guedes - Segundo a ótica de diferentes especialidades, a amputação ainda continua sendo vista pela própria equipe terapêutica como uma derrota, porque o paciente perde uma extremidade do corpo. Às vezes, recebo pessoas com 30 anos de seguimento de sequelas decorrentes de um acidente grave no pé ou na perna. Elas relatam que cada vez que procuraram um médico, reunia-se uma junta que decidia fazer alguma coisa fantástica, mas ninguém parava para olhar que aquele pé não era mais viável funcionalmente há muito tempo. Uma lesão grave que comprometa grandes massas musculares e o sistema neurológico representa uma perda irreversível. O grande azar dessas pessoas era ter a parte vascular preservada. Elas iriam arrastar o pé e isso seria realmente a grande deformidade, a deformidade funcional que carregariam para sempre.


EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE PRÓTESE

Drauzio – Como evoluiu o conceito de prótese nos últimos anos?

Marco Guedes – A mudança mais importante foi desvincular do processo de criação desses aparelhos a idéia de reposição da imagem cosmética do membro perdido. Por muito tempo priorizou-se a reposição da imagem corporal em detrimento da reposição funcional. A história do desenvolvimento desses aparelhos foi marcada por um evento infeliz para o americano Van Phillips e feliz para todos os outros amputados. Nos idos de 1970, Van Phillips estava esquiando puxado por uma lancha num lago da Califórnia, quando caiu na água com os esquis presos nos pés. Percebendo que outra lancha se aproximava, tentou afundar, mas os esquis não deixaram que submergisse e seu pé foi cortado pela hélice da outra lancha. Ele era um tipo criativo, um excelente ator que trabalhava em rádio, e não se conformou com o aparelho protético que lhe deram. – “Puxa vida, tenho dificuldade para descer uma simples guia de calçada” – era uma de suas queixas. Foi, então, que decidiu fazer o curso de técnico em prótese e órtese na Northwestern University em Chicago, à procura de uma solução mais adequada para seu caso e transformou-se num pesquisador brilhante no campo das amputações. Seu grande mérito foi desenhar pés mecânicos pensando na reposição de suas funções, como a absorção do impacto e a impulsão. Seu objetivo era recuperar a impulsão que as pessoas têm quando desprendem o pé do solo durante a marcha, impulsão que empurra o corpo para frente. Com o desenho simples de um C numa lâmina de carbono que funciona como um pé mecânico totalmente desvinculado da imagem cosmética, Van Phillips conseguiu devolver essa função para a pessoa amputada. Só mais tarde se pensou na aparência estética que permitisse ao amputado estar, por exemplo, num casamento ou num batizado sem ser o centro de atenção da festa o que, sem dúvida, faz sentido. Não faz sentido, porém, a pessoa amputada buscar uma reposição cosmética para esconder-se atrás de um membro artificial, fingindo ter um braço ou uma perna, e fechar-se para as oportunidades que a vida oferece, trancando portas e janelas da existência por medo de ser vista como tendo passado por uma amputação. Essa visão precisa acabar definitivamente. Dentro do novo conceito de reabilitação, procura-se valorizar o resgate funcional do amputado acima do resgate da imagem física. Não estou dizendo que ele deva andar com coisas estranhas pelas ruas só porque é amputado. Estou dizendo que deve tentar recuperar a função para a qual seu corpo se presta na vida, que é servir de veículo para pegar objetos, caminhar, subir escadas, descer uma rampa, etc. Depois se pode pensar no artifício cosmético aplicado sobre o aparelho que lhe permita passar despercebido onde for confortável, em situações públicas com pessoas desconhecidas em volta, como numa festa, por exemplo.
O que realmente é sério é o amputado adquirir a visão de que está doente e precisa ser tratado. É esconder-se atrás de uma imitação por assim dizer perfeita, mas que não passa de uma perna ou um braço de boneca.


MAIS INFORMAÇÕES :
http://drauziovarella.com.br/audios-videos/estacao-medicina/reabilitacao-dos-amputados/
http://drauziovarella.com.br/audios-videos/estacao-medicina/amputacoes/

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